Marta Pipponzi

Marta Pipponzi

Idealizadora filme Quantos Dias. Quantas Noites

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Eu me perguntava sobre isso: quanto tempo dura uma vida? São 50 anos? O que é ser velha? Uma ginasta de 23 anos, ela é velha para ser uma ginasta? O que que ela vai fazer com os outros 50 anos, 70 anos de vida?

Marta Pipponzi

De onde que veio a motivação para investir em um filme sobre longevidade? Qual é sua conexão pessoal com o tema?

Marta Pipponzi: A história do filme veio depois. A minha conexão com o tema começou lá nos anos 2000. Meu pai se aposentou super cedo. Ele não tinha nem 55 anos. Ele se achava velho para a função dele e tinha outras questões pessoais, então ele se aposentou. Aí achou uma série de outras coisas para fazer como hobbies, mas eu o via sem um propósito. A mesma coisa aconteceu com meu sogro, que trabalhava desde os 11 anos. Um pouco depois, minha mãe morreu. Não chegou nem aos 55 anos. Aí eu comecei a olhar um pouco para frente e pensei que essa geração foi configurada para ter um trabalho, uma carreira só. Eu tinha na época uns 30 anos. Eu estava trabalhando no mercado corporativo e pensei: “Será que eu vou estar velha para fazer o que eu faço?” Ainda não se falava muito nisso, mas eu achava que isso seria uma grande questão para o futuro das pessoas. Isso ficou na minha cabeça. Eu decidi que queria ter uma segunda carreira e fui fazer uma segunda faculdade, Letras, que era o que eu sempre quis fazer. Eu mesma fui me ressignificando. Eu queria continuar sendo produtiva de alguma forma e fui vendo que para as pessoas estava ficando difícil, principalmente porque ninguém falava nisso.  Aí a gente se juntou em 2015 ou 2016 em família. Foi uma provocação do meu tio que convidou a gente para participar de uma discussão: “que causa te incomoda no mundo?”. Estávamos eu, meus irmãos, meus primos, meu tio. Cada um teve essa chance de poder explorar junto com uma consultora que mediou essa dinâmica. Ela foi conversando com cada um de nós e para mim, ela falou que meu negócio era longevidade. Aí eu fiz um trabalho super profundo com ela e a gente foi conhecer iniciativas. Eu tinha uma sensação de que, embora o tema não fosse muito falado, tinha muita gente já fazendo coisa boa. Então conheci organizações e projetos incríveis. Mas quando chegava na hora, minha inquietação ainda parecia sem resposta. Eu queria que o debate viesse para a sociedade. Eu queria que as pessoas começassem a falar desse assunto. Então, perguntei “Como é que a gente faz isso?” Aí a consultora falou, “Vamos fazer um filme!”  e sugeriu falarmos com a Maria Farinha Filmes que tinha acabado de lançar “O Começo da vida”.  Eles falavam do começo da vida e a gente queria falar teoricamente do final. É isso! Um filme como pacto social.
Uma senhora e uma jovem preparam o almoço juntas

Você já tinha tido alguma experiência com cinema?

Marta Pipponzi: Estou fazendo minha formação de escritora. Não sou cineasta, mas sou uma super entusiasta do cinema. Amo muito, meu pai era um cinéfilo. O cinema é uma coisa muito importante na minha formação pessoal. Então a ideia de fazer um filme fez brilhar muito os meus olhos. Eu acredito muito no cinema como uma expressão artística e no poder de comunicação que ele tem, no poder de passar uma mensagem, então aquilo fez muito sentido. Só que eu não sabia muito como esse filme ia ser, do que exatamente a gente ia falar. A Maria Farinha trouxe a proposta de fazer uma pesquisa profunda, um projeto. Aí eles começaram a mapear os temas. Eu achei que ia ficar ainda muito nesse lugar comum de quem consegue se recolocar no mercado de trabalho, no mercado platinado, bombando em termos de produto. Mas eu sabia que tinha alguma coisa ali que precisava que fosse falada, sobre a finitude da vida. Até porque eu tinha perdido meus pais cedo. Eu me perguntava sobre isso: quanto tempo dura uma vida? São 50 anos? O que é ser velha? Uma ginasta de 23 anos, ela é velha para ser uma ginasta? O que que ela vai fazer com os outros 50 anos, 70 anos de vida? A equipe da Maria Farinha foi muito sensível no processo todo por me ajudar a listar todas essas perguntas. E quanto mais a pesquisa se aprofundava, mais essa questão da desigualdade se escancarava.

A pandemia também impactou esse processo?

Marta Pipponzi: Com a pandemia, a questão do envelhecimento e da finitude ficou mais escancarada ainda. E o filme foi ganhando um contorno… eu não imaginava que o filme ia ficar com essa cara. Eu tive que tomar uma decisão estratégica de falar sobre um tema que é difícil: finitude, cuidados paliativos, desigualdade. Foi um grande desafio achar um patrocinador. Todo mundo quer investir em bebê e criança mesmo para falar dos problemas que são mais solucionáveis. As empresas não queriam um filme pesado. Eu me lembro da primeira vez que eu fiz um texto para apresentar o tema e eu falei: “Gente, o denominador comum é que a gente vai morrer. O quanto cada um vai viver e o que é a longevidade para cada um é outra pergunta que a gente vai ter que escavar”. Mas eu não vou dizer que houve clareza o tempo todo. Foi um processo que surgiu de um desconforto que foi sendo escavado e lapidado.

É difícil assistir ao filme e não se perguntar “Quem vai cuidar de mim, quem vai cuidar de quem?” E você, até assistir ao filme, você já tinha se perguntado isso?

Marta Pipponzi: Eu tinha me perguntado isso, mas no processo de fazer o filme ficou muito mais latente. Eu acho que como eu perdi meu pai e minha mãe muito cedo, eu já me imaginei nesse lugar. Você imagina que vai ter que cuidar do pai, da mãe, mas meus pais morreram. Então eu falei: “a primeira pessoa idosa que eu vou lidar serei eu própria”. Porque, lógico, tem uma tia minha, mas o problema está na tua mesa, na tua frente. Então eu acho que essa pergunta estava ali. Essa questão de cuidar da saúde sempre esteve embutida em mim, mas na hora do filme, realmente não tem como não parar para pensar nisso. E olhando as pessoas que cuidam realmente, você percebe que é muito o universo feminino, como as mulheres se envolvem muito nisso ainda. É um desafio gigante, né?  Mas, se você faz só um filme maravilhoso com o velhinho de paraquedas, o cara que está na comunidade compassiva nunca vai se identificar com aquilo. Ele vai falar: “Essa não é a minha realidade e ninguém está falando da minha realidade”. Eu me lembro de uma época do filme em que a gente foi fazer um brainstorming em um hotel em São Paulo. Era uma outra equipe de direção e uma das diretoras era supernova, negra, carioca. Ela falou: “Gente, longevidade para a minha comunidade, de homens negros, na periferia, é 30 anos, ninguém passa dos 30 anos”. Ainda assim, é importante que as pessoas entendam que esse é um tema que é de todo mundo. É nesse ponto que a iniciativa privada tem que fazer parte do investimento necessário para as mudanças acontecerem, com mais ferramentas para pressionar o poder público, como foi o caso dos cuidados paliativos dentro do SUS. O filme foi uma ferramenta. O Cacau [diretor do filme] foi lá no Congresso falar também da questão da regularização da profissão de cuidador, que não é regulamentada.

A Política Nacional de Cuidados foi enviada recentemente ao congresso, propondo o reconhecimento do trabalho de quem cuida e o suporte para isso. Aliás, você falou já de como as mulheres acabam sobrecarregadas por causa da naturalização do papel de cuidadoras, que é na verdade uma construção cultural. Eu li que as redes que se formaram de suporte ao filme também tinham forte presença das mulheres. Foi por acaso?

Marta Pipponzi: É como você falou, sendo uma construção cultural, é difícil. Mas não foi proposital assim de vamos juntar mulheres, porque as mulheres têm esse viés. Mas é óbvio que, no final das contas, quem se envolve mais com o tema é quem está mais antenado. Não acho que só nessa questão do cuidado, mas nas questões do outro, as mulheres estão muito mais nesse lugar. Eu acho que essa deve ser uma estatística de quem se envolve com iniciativas de Terceiro Setor, deve ter muito mais mulher envolvida do que homem. De qualquer forma, não foi uma coisa pensada. Mas não me surpreende a diferença de você mostrar o filme para uma mulher e mostrar o filme para um homem. E como cada um reage, a maneira como cada um processa, mesmo nas esferas pequenas, particulares, dentro das empresas, é outra. Meu chute é que o filme deve ter sido mais exibido nos nossos parceiros, cujas pessoas envolvidas eram mulheres.
Um senhor de cabelos grisalhos e blusa azul clara, sorri em sua cadeira

A gente falou da contribuição das mulheres. Vamos falar agora das contribuições que as pessoas idosas fazem ao longo da vida, seja cuidando de si mesmas, seja se mantendo produtivas, seja cuidando dos netos, seja no voluntariado, seja até como arrimo da família. O que precisa mudar no nosso modelo mental para que a gente consiga reconhecer o valor dessas contribuições?

Marta Pipponzi: Eu acho que no nosso modelo mental a gente vê o velho, o idoso, meio como café com leite, por mais que ele ajude. De uma maneira bem generalista, é assim: eu deixo meu filho com a minha mãe, mas ela vai meio ter que fazer o que eu estou mandando. Eu vejo muitas amigas que as mães ajudam, pegam na natação, levam. Estou falando do nosso recorte deste o tamanho. Mas tem um pouco esse lugar, do café com leite. Por mais que ajude, nosso modelo mental nos leva sempre naquele lugar em que você tem que dar uma checada se fez direito. A gente precisa desconstruir isso. Não é café com leite. É um outro jeito de fazer, não é menos válido. É um outro jeito de entregar. Da mesma maneira, se você vai contratar uma pessoa mais idosa pra, sei lá, trabalhar na sua empresa, como caixa do supermercado, não é pensar que agora o caixa está mais devagar. É normal, esse é o ritmo agora. É assim, a fila de espera agora vai ter esse tempo, pronto. A gente precisa ter um pouco mais de cuidado para realmente entender que, se a gente está falando de uma outra fase da vida, outro tempo, ela não é menos válida, menos importante, como o café com leite, sabe? Eu acho que ainda tem muito da visão do café com leite, de dar uma checada, se fez do jeitinho que a gente queria que fizesse.

Mesmo que o envelhecimento ainda se coloque como privilégio, nunca é cedo para a gente começar a se perguntar sobre o que a gente vai fazer com os anos de vida que a gente ainda tem pela frente. Essa é uma das provocações que o filme faz também. Então, por que pensar a própria longevidade? Por que isso importa?

Marta Pipponzi: É uma das primeiras coisas que me perguntaram. O que você gostaria que a pessoa que assistisse ao filme pensasse, falasse, fizesse? Essa foi a minha resposta, eu queria que ela parasse para pensar na própria longevidade. O que eu vou fazer? Como é que vai ser a minha vida? Eu acho que quando a gente vê o problema na gente, nossa vontade de se envolver com a questão, de ver a realidade, ela aumenta infinitamente quando comparada a uma coisa que está só no outro, que parece que está longe. Eu acredito ainda mais que um denominador comum é a finitude. O envelhecimento ainda é privilégio. Mas eu acho que se não começar com uma provocação pessoal, com uma reflexão pessoal, qualquer coisa que venha depois ficará menos potente. Você pode até imaginar sua longevidade de um jeito diferente da minha, diferente da do seu vizinho, diferente da do cara que mora do lado da ponte. Mas eu acredito muito que qualquer mudança tem que, de fato, começar com o sentido que aquilo tem para mim. Eu não acho que isso é um individualismo, acho que isso é uma necessidade para a gente ficar mais potente, ainda mais em uma questão que é tão humana. Por isso eu sempre gostei muito da ideia do cinema. O cinema é muito potente para gerar reflexão pessoal. Isso para qualquer filme, o filme besta, o filme bonito. Ele sempre tem isso que, de alguma forma, ele mexe com você. Para que você realmente consiga ser agente de alguma coisa, você precisa estar visceralmente envolvido. Então a reflexão sobre a longevidade e o envelhecer tem que começar internamente.

Eu acredito ainda mais que um denominador comum é a finitude. O envelhecimento ainda é privilégio.

Você se reconhece como uma agente de transformação do mundo? Como é que é envelhecer nesse papel?

Marta Pipponzi: Nossa, totalmente. E, principalmente depois do filme, com certeza mais ainda. Para mim, como pessoa física era difícil tangibilizar o impacto, então depois dessas três consequências muito tangíveis que o filme trouxe, eu posso falar que plantei essa semente. A trajetória ficou muito clara para mim, então, com certeza. E hoje eu acho que nada é muito por acaso, o fato de eu ter ido fazer uma segunda faculdade, estar reinventando minha carreira. A vida ganhou uma nova dimensão para mim, não só porque eu queria me ocupar e fazer uma coisa legal, mas porque eu quero ser produtiva, porque eu sei que tenho muito para dar. Sinto que estou vivendo isso na pele, seja no lado pessoal, seja no lado da contribuição. E eu vou falar de novo do filme. Mudou muito a minha cabeça, porque quando eu tinha uma visão extremamente encurtada do envelhecimento, dos problemas, o filme foi uma grande oportunidade de eu chacoalhar o meu mundo e me destacar das minhas visões internas, olhando para outras realidades que eu não tinha parado para olhar nesse recorte. Quando você vê o nível de gente solidária reunida no filme, envolvida e esperançosa, isso me mudou. Eu não tinha esse nível de otimismo, nem de consciência, antes de passar por todo esse processo.

E para terminar, o mapeamento realizando pelo Lab Nova Longevidade reúne mais de 400 iniciativas de todos os setores que estão ajudando a repensar a longevidade no Brasil. O que precisa acontecer para que a sociedade crie mais demanda por soluções que viabilizem e valorizem as contribuições de pessoas de todas as idades?

Marta Pipponzi: Essa pergunta é complexa. Que tal resetar todo mundo, apertar um botão e reiniciar, mudar a programação mental? Não tem outro caminho, senão o de plantar sementinhas. Mas o fato de vocês terem criado essa iniciativa de mapeamento, entender e estar fazendo essa pergunta, já pulamos dez passos no jogo. E uma coisa vai levando a outra. Eu acho que você não pode parar de pensar, de provocar o tema, seja no mundo, na sua vida pessoal, na sua vida, no trabalho, na sua comunidade. Eu acho que o segredo é criar essas narrativas, porque as pessoas têm que se ver nesse lugar de envelhecimento. Têm que se ver, que ver os pais e quem estiver ao redor. A gente tem que fomentar o máximo possível de outras iniciativas. Existir 400 iniciativas é maravilhoso e quero muito um dia poder acessar esses dados e entender quais são elas. Eu não sei muito qual é o propósito do trabalho de vocês, mas ter uma fonte catalisadora é fundamental para que a gente consiga chegar mais longe e consiga ir cuidando das questões e cuidando do outro. Porque eu sinto que para muitos dos problemas sociais que a gente tem, tem muitas coisas, mas falta um organizador para dizer: “Peraí, como é que a gente pode potencializar tudo isso? Como é que essa iniciativa pode ir mais longe? Como é que isso aqui tem que ser reconstruído para ser inovador?” Eu acho que isso é fundamental. E o fato de vocês estarem fazendo é, de novo, mais 10 casinhas andadas no jogo.

Marta Pipponzi

Sobre Marta Pipponzi

Marta Pipponzi é escritora, tradutora, diretora do Literat, espaço de locação de eventos, de criação de conteúdos literários e de apoio a iniciativas artísticas. Atualmente, faz Mestrado em Escrita Criativa (Não-Ficção) na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde mora com suas três filhas e marido.

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