João Paulo Nogueira

João Paulo Nogueira

Cuidador de Confiança / Fellow Ashoka

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Alcançamos uma economia sistêmica do ponto de vista da saúde. Isso porque, controlando melhor as condições de saúde, evitamos internações e idas ao pronto-socorro.

João Paulo Nogueira

Qual é a sua conexão com o tema de longevidade e por que a sua atenção está voltada para o cuidado?

João Paulo: Sou médico geriatra e estudo esse tema há 17 anos. Mais recentemente desenvolvi uma plataforma para capacitar e instrumentalizar o cuidado de idosos no ambiente domiciliar.
Quatro amigos 60+ se encontram, e um senhor abraça sua amiga com carinho

O que o Cuidador de Confiança tem de inovador? De que forma ele está transformando o cuidado com pessoas idosas?

João Paulo: Primeiro, ele facilita a captura de informações do que acontece entre uma consulta e a outra, porque ele tem acesso a informações que podem ser derivadas para uma tomada de decisão ou uma conduta mais urgente, como quando há uma intercorrência, como uma queda, um engasgo, uma febre, uma pressão alta.  Além disso, ele também captura as informações de maneira rotineira que, uma vez consolidadas, podem ajudar na identificação de padrões para que esses indivíduos sejam melhor cuidados e tenham uma melhor qualidade de vida, além de levar mais tranquilidade para a família. Por fim, alcançamos uma economia sistêmica do ponto de vista da saúde. Isso porque, controlando melhor as condições de saúde, evitamos internações e idas ao pronto-socorro. A grande inovação é fazer isso por meio da capacitação dos cuidadores. Enviamos um check-list diário com toda a rotina que o cuidador precisa fazer e “pílulas” de conteúdo com a capacitação que ele deve seguir para lidar com situações que estão acontecendo com aquele indivíduo sob seus cuidados naquele momento. Isso tudo de forma bastante contextualizada.

Você falou dessas "pílulas de conteúdo" para capacitação. Qual que é o papel da educação no cuidado e no autocuidado? Qual é a contribuição do Cuidador de Confiança para a educação continuada de cuidadores formais e informais?

João Paulo: É trazer, por meio dessa plataforma que usa essa inteligência, a metodologia do Cuidador de Confiança que leva o conteúdo certo no momento certo para a pessoa certa, com muito contexto. Por exemplo, se o cuidador está ali naquele momento tratando de um engasgo, ele vai saber qual é a manobra que deve ser feita, qual tipo de alimentação que deve ser dada. Se o idoso tem uma prótese dentária, não pode dar um alimento duro para que ele possa mastigar. Ou, se tem uma intercorrência, o cuidador saberá quem deve chamar e o que deve fazer, seja como profissional ou como cuidador familiar. A gente sabe que a profissão está para ser reconhecida, mas tem um valor diferenciado entregar isso no momento que a pessoa precisa.

A tecnologia pode escalar o acesso e a qualidade do cuidado dirigido às pessoas idosas. Considerando os 60+, como cuidar da inclusão digital de quem cuida e de quem é cuidado? Isso é um gargalo?

João Paulo: Quanto mais a população envelhece, quanto mais a nossa expectativa de vida aumenta, as gerações que estão vindo já virão com esse aprendizado. Mas ainda tem um gargalo sim. O que a gente faz é estar mais próximo desse usuário, de quem consome esse tipo de tecnologia para fazer as adaptações de usabilidade. Também tentamos nos inspirar em plataformas que já são amplamente utilizadas, como WhatsApp e redes sociais que os idosos já usam com bastante frequência. E trazer muito da inclusão, que está no nosso roadmap, trazendo conteúdos ou orientação por áudio. Ainda nesse quesito de inclusão, do ponto de vista de infraestrutura, a gente já fez alguns avanços, como criar um aplicativo web e não nativo, porque o acesso é muito mais fácil, você manda um convite no WhatsApp, não ocupa memória do celular. Se ele esquece, manda outro convite ali pelo WhatsApp mesmo. As atualizações que frequentemente têm que ser feitas são todas do lado da plataforma, então vai simplificando tudo isso.  Outro avanço foi deixar o check-list de quem executa o cuidado praticamente só clicável. Ele quase não tem nada para escrever. Ele pode escrever um comentário ou uma observação extra, mas diria que 90% do que ele tem que fazer basta clicar. Marcar se está ok, se não está ok, se está feito, se não está feito.

Você continua acompanhando pessoas reais que cuidam de pessoas reais?

João Paulo: Sem dúvida. Eu tenho um horário bastante reduzido, mas eu permaneço na assistência, muito atento, ali na ponta, ao que essas pessoas precisam. É uma entrega de valor muito real. Se eu sei da informação antes, eu consigo atuar de uma forma precoce para evitar uma complicação. Felizmente, para mim, a carteira de clientes que eu tenho acesso são pessoas que têm um contato maior com seus médicos. Mas, infelizmente, isso acontece para uma minoria. Se você tem um plano de saúde médio, às vezes até um razoável, dificilmente o médico do plano vai te dar o WhatsApp dele. Então, quando acontece alguma coisa, você fica vendido no pronto-socorro ou numa central, faz uma telemedicina com alguém que nunca te viu, que não tem o menor contexto do que acontece com você. Por isso, ter essa informação contextualizada é transformador.
Uma jovem senhora de cabelos grisalhos e curto, sorri.

Você tem uma fala que é “todos nós seremos cuidadores de alguém”. Será que a gente já tem consciência disso? Como você avalia a cultura do cuidado no Brasil?

João Paulo: Sabidamente, a gente não tem essa cultura. O brasileiro acaba se programando muito pouco para as coisas. Quando eu estava na Faculdade de Saúde Pública, eu participei de um projeto de preparação para aposentadoria. As pessoas aos 55 anos eram convidadas para poder participar de um workshop. Chegava na hora, “isso aí não é comigo, não vai acontecer”. Como não vai acontecer? Tomara que aconteça. A gente não está preparado, a gente se planeja muito pouco. A gente deveria ter noção de cuidados mínimos com o outro, porque isso vai acontecer, principalmente para as famílias e da forma mais inesperada e mais abrupta. A gente está aqui, minha avó mora em casa, ela cai, quebra o fêmur, você vira um cuidador. Estando preparado ou não, a gente vira e a rotina muda e de uma forma muito atravancada se você não tiver esse conhecimento ou se não tiver quem possa ajudar nisso.

Há espaço nas políticas públicas para o modelo de cuidado proposto pelo Cuidador de Confiança?

João Paulo: Há bastante espaço. Temos um desejo de ocupar esses lugares, porque a plataforma também pode ter uma versão mais leve, mais democrática, mais econômica, para poder instrumentalizar cuidadores familiares. O Governo pode complementar com atuações episódicas de profissionais que podem visitar a casa, ou pode usar dessa base de dados que é gerada pela plataforma para alimentar as consultas médicas no momento das interações.

Considerando que a Política Nacional de Cuidados do Idoso, recém-encaminhada ao Congresso, reconhece a interdependência entre quem precisa de cuidado e quem cuida e tem como objetivo garantir o trabalho decente para trabalhadores e trabalhadoras remunerados do cuidado e a redução da sobrecarga de trabalho para quem cuida de forma não remunerada, que são, fundamentalmente, as mulheres. Que lei você gostaria de ver aprovada em relação ao trabalho invisível dos familiares cuidadores?

João Paulo: Primeiro que a mulher, ela tivesse o reconhecimento desse trabalho que é invisível, que isso fosse mais tangível nos ambientes familiares e para a sociedade como um todo. E que a partir disso se desdobrasse em ações que pudessem trazer algum tipo de contrapartida, de reconhecimento para a mulher: seja um horário no trabalho, uma licença diferente, uma pausa durante o dia. Pode ter uma isenção de algum imposto que ela paga porque ela tem uma renda menor, pois parte do tempo dela está investindo para cuidar de outra pessoa. E não é só cuidar da mãe dela. É um trabalho invisível que afeta não só a família, afeta a sociedade como um todo. No Cuidador de Confiança, tem uma versão do aplicativo que a gente chama de “familiar convidado”, que ele tem a permissão de ver o que acontece. Tivemos um caso muito emblemático. A gente distribuiu isso para vários netos, vários irmãos, várias pessoas, havia lá 40 e tantas pessoas que acompanhavam uma paciente. E de repente, os netos começaram a ajudar no engajamento, “vó, vi que o remédio das 9 horas não foi dado ainda, por que não tomou?”. “Ah, tomou? Falta marcar aqui”. E aí um dos filhos que visitava só aos domingos falou: “Não, mas pera aí, é tudo isso que a gente tem que fazer para cuidar da minha mãe? É essa a quantidade de fraldas que consome?”. Foi ali que ele começou a tangibilizar… e falou: “Bom, já que é assim, deixa que eu vou pagar a conta de luz”. E a cuidadora principal falou: “Nossa, alguém viu aí o que a gente está fazendo”. Efetivamente ajudamos a tangibilizar esse trabalho que é invisível.

É um trabalho invisível que afeta não só a família, afeta a sociedade como um todo.

E como o modelo do Cuidador de Confiança pode impactar os gastos com saúde no setor privado?

João Paulo: Quando a gente tem essa informação de saúde em tempo real, consolidada, que gera padrão, com isso a gente pode atuar de maneira mais precoce. A gente pode controlar melhor as condições de saúde e evitar gastos “preveníveis”, idas ao pronto-socorro, internações. É basicamente isso, mas a gente pode aprofundar em até, por exemplo, o controle de doenças crônicas.

Tem uma questão preventiva também?

João Paulo: Preventiva também, uma vacina, ou com exames, como quando vejo se a densitometria óssea está em dia, para que a gente evite ou afaste a possibilidade de uma osteoporose, para que uma queda não se torne uma fratura. Tem várias linhas que a gente pode otimizar. Mas de curto prazo e de maneira bem pragmática é evitar a ida do pronto-socorro e evitar internação e re-internações. Porque quando ele sai de alta, ele sai com uma jornada complexa também. Eu acho que traz um ganho substancial para o sistema de saúde.

Você possui uma outra iniciativa, o Duv-Idoso, que é focada na produção de informações confiáveis de saúde para pessoas idosas. Por que isso importa?

João Paulo: É importante porque nem todo paciente tem acesso a seu médico. Eu consigo trocar mensagens com os meus pacientes, trazer informação, peço para eles me mandarem, pois é muito melhor que me mandem a dúvida do que ter uma informação errada, uma fake news. E infelizmente, isso acontece para uma minoria das pessoas. Então, fazer certa curadoria desse conteúdo, trazendo uma linguagem mais fácil e acessível, também é fundamental.

O mapeamento reúne mais de 400 iniciativas de todos os setores que estão ajudando a repensar a longevidade no Brasil. Na sua opinião, o que precisa acontecer para que a sociedade crie mais demanda por soluções que viabilizem e valorizem as contribuições de pessoas de todas as idades?

João Paulo: Eu acho que, primeiro, precisa ter uma coalizão das frentes da sociedade. Porque essa transformação só vai acontecer quando vários setores da sociedade começarem a atuar de forma conjunta. Hoje ainda é muito fragmentado: você tem uma ação em saúde pública, outra em transporte, outra em mobilidade, em alimentação, uma ação financeira. São várias, mas são todas separadas. Não tem nada que enderece isso de uma forma mais integrada.  Por exemplo, a gente fica falando “vamos tentar mudar o hábito”. É humanamente impossível a gente lutar contra a epidemia de obesidade se a gente não der um jeito de tributar mais a batata frita e isentar os brócolis. Claro que é uma brincadeira, mas como a gente vai chegar nesse nível de coalizão da sociedade para que de forma, multisetorial, a gente consiga endereçar um problema que é muito complexo e amplo. Feito isso, eu acho que tem alavancas de incentivo que podem acontecer e uma mudança cultural que naturalmente vai acontecer, porque o problema existe. Ele está na casa das pessoas. E vai ficar mais fácil, mais natural, demandar e acessar essas coisas. Mas isso ainda é muito fragmentado. Vou dar um exemplo. Você já foi alguma vez em uma farmácia de alto custo do SUS? Existem várias medicações de custo superelevado no SUS, como a de Alzheimer. O custo fica em torno de mil, mil quinhentos reais por mês. Imagina quem ganha um salário mínimo, como é que faz? Está disponível de graça no SUS, as melhores. Se você for lá, você vai ver de manhãzinha um monte de motorista com carros importados e os pedidos médicos para retirar as medicações. Até aí está tudo certo, pois todo cidadão brasileiro tem esse direito. Mas quem sabe dessa informação? Quem chega nesse protocolo? Quem tem um despachante ou advogado que consegue resolver e liberar isso para poder chegar lá? Então, de novo, é fragmentado. Mas se tivesse alguém que olhasse o direito da pessoa como um todo. Puxa é assim que faz, é trabalhoso, mas tem esse caminho. Eu ofereço para os meus pacientes: “Olha, aqui está a medicação. Se você quiser, ela está disponível no SUS. Tem esse formulário aqui pela internet”. Mas, se não existir essa coalizão das várias frentes, a gente faz isso em algumas frações muito pequenas, muito esporádicas, em algumas “ilhas de cuidado” e, infelizmente, não de forma sistêmica.

Você se reconhece como um agente de transformação do mundo? Se sim, como é envelhecer nesse papel?

João Paulo: Eu me reconheço! Mas eu acho que eu sou mais um inconformado e um inquieto. Eu não quero ter a vaidade de me considerar um agente de transformação do mundo. Mas eu tenho uma inquietude minha que me move, que traz sentido para a minha vida. Para mim, o envelhecimento com essa inquietude está sendo um processo completamente natural, um contínuo. Não vi em nenhum momento, nenhuma grande mudança. Acho que o que a maturidade traz talvez seja mais clareza, mais paciência e um senso de prioridade. 
João Paulo Nogueira

Sobre João Paulo Nogueira Ribeiro

João Paulo Nogueira Ribeiro é médico e atua a serviço do envelhecimento saudável e longevidade, com grande experiência em inovação e cuidado coordenado em saúde. Formado em Clínica Médica e Geriatria, possui MBA em Gestão, Mestrado em Ciências e é Fellow Ashoka. Fundador do Instituto Horas da Vida, uma ONG que organiza uma rede de voluntariado na área de saúde, também criou startups inovadoras como Sigma Médica, ConsultaClick e Filóo. João Paulo idealizou o Duv-idoso, o primeiro canal dedicado a esclarecer dúvidas de idosos, o Cuidador de Confiança, uma plataforma que capacita e instrumentaliza familiares e cuidadores de idosos. Autor do livro “Saúde, cuidado e uma dose de ousadia” pela Editora Senac, foi reconhecido com diversas premiações: Prêmio HBS/Harvard-OPM (2012), Prêmio Cidadão Sustentável (2013), Paulistanos Nota Dez – Veja São Paulo (2014), Projeto Dom Fleury (2014), Condutor da Tocha Olímpica (2016), Prêmio ABRAPS Virada Sustentável (2018), Visionaris Prêmio Banco UBS ao Empreendedor Social (2018) e Prêmio Mapfre Inovação Social (2024).

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